Devilman Crybaby – Reflexões, eu, o Devilman, marcas e impacto

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Sabem, é uma dádiva do absurdo por si só a existência de algo como Devilman Crybaby na animação hoje em dia, e uma série de fatores culminam nessa afirmação.

Devilman é uma mensagem anti-guerra, contada a nós através de quadrinhos de Go Nagai em 1972. Provavelmente um dos maiores clássicos dos mangás e uma das histórias mais importantes de seu tempo. A história foi concebida num mundo que carregava o contexto sociopolítico de pessoas vivendo uma tensão e ansiedade regidas pelo temor de que uma grande guerra explodisse e suspeitando de uns aos outros.

E aí que mais de quatro décadas se passaram, e se botarmos na ponta do lápis, vemos, que, apesar de muita coisa ter mudado no mundo, essa tensão, se é que ela algum dia foi embora, está mais viva do que nunca. O quadrinho de Nagai continua sendo extremamente atual em seus temas e, facilmente, o magnum opus de sua carreira que já dura meio século.

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Onde tudo começou, lá em 1972, nas mãos de Go Nagai

Devilman Crybaby é a mesma mensagem anti-guerra, contada novamente a nós através de animação, sob direção do aclamadíssimo Masaaki Yuasa em distribuição na plataforma de streaming de vídeo mais popular do mundo, o Netflix, em 2018.

Mensagens anti-guerra já foram dadas aos montes no entretenimento, mas poucas são tão humanas e pessoais quanto Devilman Crybaby. O mangá original só ficou conhecido no ocidente graças à ação de traduções amadoras (muito boas) de fãs para o inglês (e consequentemente, outros idiomas) e por ter sido publicado em alguns países europeus como França ou Itália (onde uma boa dose das obras de Nagai num geral é bem cultuada).

Crybaby está sendo distribuído e teve financiamento da gigante Netflix para existir. Você com certeza conhece alguém que usa ativamente o Netflix em seu dia-a-dia, isso se você mesmo não for esse alguém. É o serviço de streaming mais popular do mundo inteiro, quase todo mundo assiste alguma coisa ali ou chama os outros para assistirem junto, e consequentemente, isso faz com que a animação de Yuasa tenha sido distribuída oficialmente para 190 países no mundo inteiro, e consequentemente tendo sido traduzida em áudio para mais oito idiomas além do Japonês (inclusive, entre estes, está o português brasileiro), e como se ainda não fosse o bastante, legendas para mais de 25 idiomas diferentes.

O que eu quero dizer com esse lenga-lenga todo que você talvez já saiba é que, se existe um contexto que gerou uma oportunidade melhor pra fazer a mensagem originalmente concebida há quase 50 anos atrás ser finalmente ouvida pelo mundo inteiro, eu desconheço. Se o mundo nunca teve antes tanto acesso à história que fora criada originalmente por esse japonês, que hoje já é idoso e tinha lá seus 20 e poucos anos quando a escreveu, agora a barreira que impedia esse acesso foi drasticamente reduzida.

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e onde tudo culminou, 45 anos depois, pelas mãos de Masaaki Yuasa.

E o que é Devilman, senão uma história sobre a jornada de Akira Fudo, um garoto que se mete numa roubada por causa de seu legítimo amigo da onça, Ryo Asuka, e agora se vê numa missão de defender a humanidade de terríveis demônios, que eram os dominantes do nosso mundo antes de sequer o Homo Sapiens ser uma realidade e voltaram para tomar o que é deles, a Terra?

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Go Nagai, Devilman e Masaaki Yuasa.

Eu tenho uma relação bem curiosa de fascínio com o trabalho do Go Nagai (que pode ser muito bem visto em outra ocasião, na qual dissequei Gakuen Taikutsu Otoko). Ele claramente não é o melhor artista de sua época, mas é certamente um dos mais icônicos e, admitidamente, uma boa parte disso foi propulsionada pelo contexto turbulento o qual o mundo estava passando na época e eu já mencionei levemente no começo do texto. Devilman não foi o meu primeiro contato com o trabalho dele, mas sim Mazinger Z, no meio da minha adolescência, e ali eu já senti um pouco do que faz o trabalho de Nagai ser tão especial e fascinante para várias pessoas, eu incluso: ele é cru e totalmente sem filtro. Se você já leu algum tanto sobre a biografia do cara, já nota uma constante de que ele tava nem aí pra autoridade e alguns de seus trabalhos às vezes eram uma afronta enorme ao tradicionalismo da época, alguns até mesmo indo por um caminho meio “trash”.

Entre os entusiastas, fãs, estudiosos e historiadores (como soam pretensiosas essas duas últimas palavras) de Nagai e da mídia, Devilman é frequentemente considerado o trabalho mais importante de sua vida e a história mais sólida e consistente que ele já fez. Não é muito difícil perceber isso lendo o mangá original, ele pode não ser perfeito, mas ele faz uma coisa que poucas obras fazem até hoje: deixa um impacto perturbador por conta de seus temas e várias cenas extremamente chocantes que tiveram um crescendo narrativo até que elas cheguem, e assim, tendo um impacto muito maior.

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Lembro que a minha primeira vez experienciando Devilman foi na adolescência. Eu já tava mais ou menos familiarizado com o trabalho do Nagai e logo no primeiro volume a minha atenção já foi fisgada totalmente e, numa mesma tarde, eu lembro de ter devorado todos os 5 volumes numa tacada só. Foi como se eu tivesse ficado num transe hipnótico, um grande frenesi, até o final, que me deixou completamente atônito e pensando no que eu tinha acabado de experienciar por várias e várias horas, senão dias. Pouquíssimas eram as coisas que eu tinha lido que haviam me deixado naquele estado até aquele momento da minha vida, e eu não era exatamente um novato com mangás, já conhecia bastante coisa. Mas diferente de um monte delas, a história do Devilman foi algo que ficou carimbado no meu cérebro a ferro quente até hoje, que eu sou um marmanjo velho.

Não era exatamente incomum eu lembrar do Homem Capiroto toda vez que algum assunto que tivesse alguma relação com ele, ainda que de forma bem tangencial, surgia numa roda de conversas. Seja sobre mangás velhos, sobre Go Nagai, sobre histórias brutalmente violentas, sobre boas histórias ou mais abrangentemente ainda, sobre bons quadrinhos.

Curiosamente, com alguma antecedência da estreia de Crybaby no Netflix, eu decidi reler o mangá. Eu não tenho muito o hábito de reler quadrinhos assim, salvo quando eu esqueço totalmente da história e pego pra revisitar por algum motivo bem específico ou simplesmente porque “quero sentir isso de novo”, sendo que esta última, foi a motivação do caso em questão.

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O momento onde a loucura intensa cessa um pouco pela primeira vez nessa história de caos. Possivelmente uma das minhas páginas favoritas de qualquer quadrinho.

Em minha releitura, percebi algumas coisas, e a primeira delas foi que eu me lembrava TOTALMENTE da história e lembrava até mesmo da disposição de quadros de algumas páginas (como essa aí logo acima). Foi, no mínimo, engraçado virar as páginas e ter uma reação como “cacete, isso aqui é exatamente como eu me lembrava” e percebendo que aquilo tava mais vivo do que eu achava que estava na minha memória. A outra coisa que percebi, foi que o mangá era bem melhor do que eu me lembrava… ou vai ver eu só reli numa época que eu tenho bem mais bagagem de coisas que consumi ao longo da vida e ele ainda conseguiu permanecer acima de muitas dessas coisas.

Sabe qual é o ponto a ser levantado com essa minha historinha pessoal toda com Devilman? É mais simples do que eu provavelmente fiz parecer, o lance é que o negócio MARCA, pra bem ou pra mal. Eu não sei se consideraria Devilman um de meus mangás favoritos, mas tenho a certeza de que entre os mais marcantes que já experienciei, ele definitivamente não fica muito atrás. Para bem ou para mal, gostando ou não, você não vai ficar indiferente com ele. Alguma reação em você ele vai causar, você, assim como eu, é um ser humano, e Devilman é uma história tão humana quanto as nossas entranhas. É uma ligação quase visceral com a nossa natureza e quem somos enquanto espécie e sociedade e… esse é um dos principais temas da história. É um mangá com uma alma autoral bem viva e ela arde, ô como arde.

Outra coisa que aconteceu na minha revisita a Devilman depois de velho foi perceber que a exata mesma coisa que aconteceu quando eu tinha 16 anos, aconteceu de novo… eu li o mangá inteiro numa paulada só, eu tava sob efeito do mesmo transe hipnótico das primeiras até as últimas páginas e por que caralhos isso aconteceu de novo?

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O momento em que você sabe que daí pra frente não tem mais volta.

Existe algo ali que é meio difícil de explicar, mas acho que o momento em que essa sinapse começa e eu não consigo mais voltar é justamente no momento em que Ryo abre as portas do “Sabbath”, o antro de insanidade regado a drogas, impulsos sexuais e puro frenesi musical onde Akira irá se transformar no Devilman pela primeira vez. Nas páginas antes de abrir aquela porta, é deixado bem claro que daquele ponto em diante, não tem mais volta e que o caminho em direção à insanidade já tava traçado. Esse foi o momento em que a coisa começou a clicar pra mim de novo, e a página que mostra o ambiente com Akira e Ryo observando da entrada, é provavelmente uma das minhas favoritas em quadrinhos e uma das primeiras imagens que me vem na mente quando lembro de Devilman. Se eu, assim como Akira, não tinha parado até aquele ponto, agora é que não vou parar mesmo. Dali pra frente, sangue será derramado, pessoas vão ficar loucas e começar a matarem uns aos outros, demônios surgirão e a mais pessoal, e discutivelmente humana, das guerras acontecerá. ISSO é o que Devilman é pra mim: o grande antro do frenesi e insanidade que é a natureza humana, e o quão podre o ser humano consegue chegar quando exposto aos seus limites mais intrísecos e deixado ao próprio instinto.

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O mesmo momento, agora animado.

Crybaby foi anunciado como uma adaptação da história original e eu tinha uma certa preocupação se a mesma alma da história que eu tanto gostava iria conseguir ser transmitida para animação, ainda que estivesse sob a direção de um dos meus diretores favoritos de animação da atualidade. Mas aí chegou a hora de assistir, ainda na estreia. Ignorando o fato de que eu já ia maratonar aquilo de qualquer forma, chegou a mesma cena que eu descrevi no parágrafo anterior na série animada, e ela me causou uma sensação bem parecida, só que parecia estar mais amplificada por estarmos vendo algo além do grande quadro cheio de gente além de um desconforto, seja pelo grande espetáculo psicodélico ou pela música totalmente de rave (eu particularmente não sou muito chegado a rave e músicas do tipo mas isso não vem muito ao caso), ou pelos pontos menores daquele lugar que estávamos vendo, com direito à parte sexual da coisa elevada a novas potências. E então, tal qual no mangá, acontece um banho de sangue de demônios numa loucura e Akira se transforma no Devilman e após aquilo eu fui devorando os 10 episódios um após o outro de uma maneira que eu só queria muito ver o resto e eu não conseguia parar… mais uma vez como se sob hipnose.

Após o término da maratona (na verdade bem antes, mas a oficialização só veio nessa hora) ficou bem claro pra mim que Devilman Crybaby conseguiu ser uma tradução/emulação impecável da mesma alma que o mangá teve. Demorou 45 anos, mas finalmente aconteceu, uma adaptação audiovisual entendeu e conseguiu contar novamente a mesma história com a mesma alma e brutalidade, ainda que de um jeito um pouquinho diferente, por conta de algumas liberdades tomadas na hora de realocar coisas da história original. Puta que pariu, se tinha alguém capaz de tal feito, só poderia ser o Masaaki Yuasa mesmo. Nesse cara dá pra confiar!

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Ele não só entendeu perfeitamente o que fazia o material original ser o que é, como conseguiu traduzir isso perfeitamente pra animação e, com as devidas mudanças, adaptar a história aos tempos modernos. Entre essas mudanças, que se você consumir ambas as versões nota bem claramente, vão desde a simples presença da Internet como veículo de informação a mudar alguns delinquentões que aparecem na história para… uns caras vestidos que nem rappers mandando altas rimas sobre diversas coisas que estavam acontecendo. Houveram algumas mudanças na forma como algumas coisas acontecem, mas a parte mais importante que são as coisas que de fato acontecem, foram mantidas, e até melhoradas pra mais efeito de choque. Mesmo com vários remendos aqui e ali, a mesma mensagem e todo o contexto de seus temas foi mantido 100% intacto. Poucas vezes vi uma adaptação tão eficiente de uma mídia para outra.

Por já ter lido o mangá antes, é praticamente inevitável pra mim tecer comparações entre ambos, porém esse aqui é um dos melhores objetos de estudo que podemos pegar para analisar o conceito de “adaptação”.

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Um de meus diretores favoritos de animação é o já falecido Osamu Dezaki, que também é facilmente considerado um dos mais importantes nomes da história da animação japonesa, e pra mim, um grande charme do trabalho dele é como ele pegava coisas que já eram conhecidas e extremamente emblemáticas por si só e conseguia transmitir elas pra outra mídia e ainda dava uma assinatura totalmente pessoal, o que tornava aquilo impressionante e altamente aproveitável mesmo pra quem já conhecia o material original (fora que vez ou outra ele tomava algumas liberdades que adicionavam à visão dele daquela história). A questão aqui é como que nenhuma adaptação nasce com a missão de “superar” o seu material original ou de torná-lo obsoleto. Seria maluquice afirmar tal coisa e Dezaki entendia perfeitamente este pensamento. Poucos são os criadores que fazem adaptações que entendem isso e fazem da forma que ele fazia, razão essa pela qual eu considero igualmente válido, por exemplo, tanto ler o mangá original de Ashita no Joe ou ver a adaptação animada do Dezaki, vai da sua escolha e as experiências são diferentes, apesar de entregarem a mesma história, e ele fez isso com algumas outras propriedades intelectuais já conhecidas que eu já gostava e os resultados foram ótimos.

Arrisco dizer que existem muitas adaptações eficientes mas poucas impressionantes, pelo menos pra mim, e Dezaki era dos impressionantes, mas claro que não temos só ele nesse seleto grupo e Masaaki Yuasa, é outro dos meus diretores favoritos por motivos bem similares: tudo que ele toca tem uma identidade bem própria e a assinatura pessoal dele está lá bem nítida. Você bate o olho e pensa “putz, isso aqui é Yuasa”, e eu gosto muito dessa singularidade e de como o cara consegue fazer isso de maneiras extremamente criativas usando todo o potencial da mídia no qual trabalha.

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putz, isso aqui é muito Yuasa.

Devilman Crybaby é o Devilman do Masaaki Yuasa. Ele não deixa de ser fiel e respeitoso ao original em nenhum momento. Ouso dizer que até faz melhor que ele em algumas coisas, mas a mesma alma e essência está lá. Ele não vai substituir o mangá ou tampouco tem essa pretensão, mas foi uma nova maneira de contar uma história, apresentando ela a quem não conhecia e oferecendo uma nova experiência a quem já conhecia (que é o meu caso). É um anime tão poderoso quanto o mangá que o deu origem e usou de todos os artifícios que podia do novo formato na mídia nova para ter o impacto que a obra de 45 anos atrás teve, do mesmo jeito.

Eu não quero chover no alagado falando do estilo totalmente exótico de direção de arte e animação que as produções do Yuasa possuem, mas tudo aqui é feito de maneira exagerada, de maneira que consegue casar bem tematicamente com a ideia de que em Devilman, os demônios impulsionam a humanidade a ceder aos seus instintos mais primais, nem que seja em cenas como uma masturbação com sons de burro acontecendo ou as cenas mais eróticas do negócio (que estão em muito maior peso que no mangá) que são intencionalmente desconfortáveis e exageradas e ganham um poder narrativo imenso por conta de contexto. É assim que se faz uma adaptação de algo que, querendo ou não, para bem ou para mal, causa uma impressão forte.

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Parte do que faz esse brilho todo de adaptação de algo que fora originalmente concebido há mais décadas do que muitos dos que estão lendo esse texto, eu incluso, eram nascidos ser tão impressionante é que, mesmo com todas as mudanças em relação ao roteiro original, a mesma história consegue ser inacreditavelmente poderosa. Não insinuando que vocês tenham o mesmo feed de redes sociais que eu, mas ainda que você não tenha assistido, a série, na semana de lançamento dela a internet ferveu com INÚMEROS comentários a respeito e várias reações, mas a maioria delas de choque e devastação, muito provavelmente por conta do teor de violência e conteúdo sexual altíssimo da série, que não é lá muito comum em animações hoje em dia pra TV (algo que só foi possível graças a isso ter sido exibido diretamente no Netflix, porque JAMAIS deixariam essas coisas passarem na TV), mas principalmente por causa da história que, apesar de todo o conjunto da coisa ser impressionante e ter uma simbiose bem sólida, é o ponto mais importante da coisa toda, e particularmente meu favorito.

Devilman é, como eu já mencionei lá no começo, uma mensagem anti-guerra, que pra passar seu ponto, usa de figuras da fantasia e personagens que representam claras forças e alegorias temáticas e, porque não, ideologias. Mesmo a violência brutal da série carrega esse peso em vários momentos. É sempre impressionante e chocante, e pode causar incômodo. Um dos princípios básicos do horror na ficção é causar sentimentos de desconforto e relacionados em quem consome aquela obra. Não que Devilman seja uma história do gênero horror, mas ele nitidamente bebe muito dessa fonte e sabe bem que impressiona.

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Essa cena não está diretamente colocada em Crybaby, mas tudo que é passado nela, está presente. Curiosamente, apesar de quando isso foi escrito, o que o rapaz aí diz continua bem atual.

É ainda meio curioso parar pra pensar que a série originalmente foi concebida por um japonês, que muito provavelmente não teve criação religiosa cristã como uma boa parte do ocidente. Go Nagai quando criança, por algum motivo que eu adoraria saber, recebeu uma cópia da edição japonesa de “A Divina Comédia”, o famoso livro de Dante Alighieri, numa versão com ilustrações de Gustavo Doré, e aquelas ilustrações foram o deixou muito impressionado e o marcou… provavelmente do mesmo jeito que ele queria deixar seus leitores com o quadrinho que fez quando adulto. Por conta de sua criação não-cristã, consequente de seu país natal também não ter o cristianismo como religião predominante, ele provavelmente não teve sentimento de “rabo preso” pra poder usar de demônios em sua arte do jeito que o fez e pra ele não deveria ser um “tabu” como seria para alguém criado num contexto religioso diferente. Ignorar Tabus é meio que marca registrada do que fez Go Nagai ganhar destaque e com Devilman chega a ser engraçado a forma como isso muito provavelmente não foi planejado com esse intuito refletido neste parágrafo.

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E por falar em níveis e tabus, mencionei de passagem que Crybaby não seria possível senão fosse o Netflix, o que me faz caminhar por outra reflexão de o que a existência de uma série como essa pode significar para a mídia.

Num ponto muito curioso da história da animação japonesa, nasceram os OVAs (Original Video Animation), que nada mais eram do que animações planejadas diretamente para home-video, sem ir pra TV ou cinema antes. Foi um fenômeno curioso que teve início na primeira metade da década de 80 e foi bem forte até o final dos anos 90 e teve uma progressão bem estranha comparado com as séries de TV. Os OVAs, por sua natureza de não irem ao ar em TV, podiam tomar certas liberdades que estes outros não podiam e foi um período de muita experimentação maluca que serviu de laboratório para grandes nomes da indústria, como por exemplo Hideaki Anno (que em 1995 iria vir a contar uma história sobre o apocalipse, admitidamente influenciada por Devilman de certa forma, chamadaNeon Genesis Evangelion, sabe…).

OVAs normalmente vinham em vários tipos, como por exemplo os que eram adaptações de baixo-médio (ou em algumas raras ocasiões, altíssimo) orçamento de mangás e livros que não veriam a luz do dia animados na TV nunca, produções originais ou pilotos para possíveis séries. Não era incomum ver alguns desses trabalhos chutarem a porta e encherem de coisa que não podiam mostrar na TV como violência extrema sem censura ou conteúdo sexual direto.

Onde entra o Devilman nessa história? Bom, a série teve uma versão animada em 1972, que saía simultaneamente ao mangá, porém era drasticamente diferente e era bem mais amigável ao público infantil, pelo menos na medida que pode-se dizer que um anime no começo dos anos 70 poderia ser. Era uma série animada drasticamente diferente do material original e o conteúdo do mangá original jamais poderia ir pra TV naquela época (e sabe-se lá como caralhos deixaram o cara fazer essa porra na SHONEN MAGAZINE, uma revista com apelo infanto-juvenil, a mesma revista que até pouco tempo atrás tava publicando… Fairy Tail. Aquela época era uma coisa de louco).

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uma pequena amostra do que eram os OVAs de Devilman. O conteúdo desse gif é totalmente “ISSO É MUITO COISA DE OVA”.

E então que em 1987 e em 1990, no meio dessa onda de OVAs, que podiam ou não ser carregados de violência extrema ou conteúdo sexual explícito ou serem ainda adaptações de mangás que não poderiam passar pela TV com o mesmo conteúdo, surgem duas animações de Devilman, dessa vez sendo fiéis (ou pelo menos tentando) ao material original e tendo resultados discutivelmente interessantes. Porém, apesar de uma animação interessante e todo aquele ou-você-ama-ou-odeia charme de animação experimental dos anos 80 e 90, ele… não chegou a adaptar o mangá inteiro, parando no que seria o final do segundo volume de cinco. Não se sabe ao certo os motivos, mas como muitas produções de home-video da época, provavelmente deveria ser caro demais pra gerar pouco retorno e, consequentemente, ter mais produção. Devilman nunca foi fielmente adaptado até o seu (extremamente emblemático) final em animação antes… pelo menos nunca tinha acontecido até Crybaby existir.

O mais engraçado dessa história toda é que Crybaby carrega muito fortemente o espírito das produções de OVAs do final dos anos 80/anos 90. As coisas experimentais estão lá, a violência e o conteúdo sexual pesado também estão. Essas coisas JAMAIS passariam na TV, e mesmo se alguma emissora fosse louca o suficiente pra deixar isso acontecer, passaria com um borrão enorme na tela. Fico feliz que, pela distribuição ter sido pensada originalmente no Netflix, isso acabou dando mais liberdade criativa à equipe e eles não tiveram medo de ter que capar conteúdo do material original pra poder fazer seu trabalho.

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E este aqui é Crybaby embalando no mesmo espírito.

É um tanto curioso que depois de certo momento no meio dos anos 2000, “OVA” deixou de ser sinônimo de “aqueles animes esquisitos que nunca passariam na TV” pra virar algo que se refere mais a episódios especiais de séries que já foram exibidas na televisão aberta, muitas vezes contidos como extras em DVDs/Blu-rays. Eu não me recordo de alguma produção recente (salvo talvez raríssimas exceções) que tenha sido lançada nesses moldes sem ter ido pra TV ou cinema antes. O eventual e possível sucesso de Crybaby no Netflix pode significar uma nova onda de produções originais que não dependam de exibição na TV (alguns títulos promissores já estão até surgindo para serem exibidos em breve). Querendo ou não, isso pode ter um impacto bem grande na mídia e é engraçado que novamente, é o Devilman sendo revivido mais uma vez pra fazer barulho, só que até nesse aspecto.

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Apesar de, da data da publicação desse texto, estarmos ainda em janeiro de 2018, não acho exagero nenhum dizer que Devilman Crybaby é possivelmente o anime mais importante do ano inteiro, e eu acho muito difícil que vá surgir algo que tire esse mérito dele. Seja por trazer novamente à tona uma mensagem que mostra que não perdeu nem um pouquinho de sua força nesses 45 anos (porque o mundo assim não permitiu), ou por significar um novo respiro para produtores, animadores, diretores e relacionados verem até onde essa mídia pode chegar e que a distribuição digital pode trazer muitos benefícios à liberdade criativa. Este é discutivelmente o trabalho mais ambicioso de Masaaki Yuasa até agora e certamente um dos mais importantes de sua carreira que já dura mais de uma década.

Aém de ser um trabalho importante para um grande nome que promete muitas coisas boas no futuro, também é uma excelente celebração à altura dos 50 anos de carreira de um dos criadores de entretenimento mais prolíficos e importantes que a cultura pop do Japão já viu.

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12 comentários sobre “Devilman Crybaby – Reflexões, eu, o Devilman, marcas e impacto

  1. Devilman Crybaby provavelmente foi uma das experiências mais intensas que eu já tive dentro da mídia audiovisual, principalmente os 3 episódios finais (que não vou dar spoiler pra quem tá lendo isso aqui e ainda não viu, mas tu que viu sabe como é). Eu assisti ele mais pelo o Masaaki em si e adorei a obra como um todo. Acho que o estilo do Yuasa combinou super bem com a proposta inteira do anime e eu gostei demais de toda essa mensagem de “Quem são os demônios, no fim das contas?”. Não li o mangá, mas pretendo, realmente achei absurdo demais esse anime.

    No mais, ótimo texto, Ninta!!

  2. Só uma correção: A Divina comédia foi escrita por Dante Alighieri, durante a idade média. Gustave Doré foi um ilustrador que, aparentemente, é conhecido pelas suas ilustrações da obra de Dante, já no século XIX. De resto, bom texto. Devilman é uma das obras responsáveis por me mostrar o potencial da mídia de mangás, e eu fiquei muito satisfeito de ver que ele recebeu um tratamento tão bom em sua adaptação, e que tenha a capacidade de alcançar um público até mesmo de pessoas que não são familiares à mídia, graças ao Netlix.

    Ah, e sobre OVAs que lançaram antes de passarem na TV, acho que Mahoutsukai no Yome entra nessa categoria. Eu lembro de que a série, que está sendo exibida agora, só começou a lançar quando acabaram os 3 OVAs que lançaram semestralmente.
    LWA é mais ou menos isso também, apesar de que ele era um projeto do Anime Mirai, mas The Enchanted Parade se encaixaria como um, eu acho.

    • Opa, obrigado pelo toque, eu vou arrumar no texto. Foi erro CRASSO meu isso.

      E sobre OVA original, muito bem lembrado, eu tinha esquecido completamente de Little Witch Academia e ele se encaixa ali originalmente antes de ter rolado a série de TV recentemente.

    • Que curioso você comentar isso, porque fez com que eu me lembrasse de uma história meio curiosa de quando eu era adolescente.

      Eu tava tendo aula de literatura no ensino médio e nossa professora já contava as histórias dos livros clássicos (aqueles de vestibular que todo mundo lê… que eu acabei nunca lendo porque ela já fazia isso pra gente), e um belo dia ela contou a história do Grande Sertão Veredas, também do Graciliano Ramos, e no meio da narração, em alguns momentos por incrível que pareça, eu lembrei também do Ryo (eu já tinha lido Devilman nessa época). Imagino que provavelmente por causa da relação dos dois personagens principais mais ou menos, mas fiquei meio cabreiro com isso até hoje pensando se eu era o único que tinha visto algo de parecido.

      • Ninta,só uma correçãozinha,Grande Sertão:Veredas é do João Guimarães Rosa.Você deve tá se referindo ao relacionamento do Riobaldo com Diadorim,que tem um ponto em comum com Devilman e com São Bernardo do Graciliano,perceber que amava a pessoa depois de perdê-la.

        • Só considero que Devilman é mais próximo de São Bernardo porque Paulo Honório é como Ryo no que consiste em ser alguém que segue a frieza da lógica para melhor se beneficiar,e essa lógica vai sendo carcomida aos pouquinhos sem ele entender as suas ações com a professora pobre só pra ter um herdeiro,mas se casa com uma mulher sem valor nenhum e sem ganho nenhum,em vez de se casar com uma filha de outro coroneu ou que tivesse posses,que só compreende que a amava,só depois dela cometer suicídio,e ter a triste noção que ele não sabia lidar com amor,só sabia dominar e mandar,nisso a fazenda cai e Paulo Honório fica louco,pois nada mais importava.Diferente do Riobaldo que tentava negar seu amor a Diadorim por pensar que ele era homem.

          • Eita nóis, realmente literatura brasileira não é meu forte, apesar de eu conhecer alguns nomes aqui e ali. Obrigado pela observação!

            A sua analogia faz bem mais sentido do que a minha lembrança referente a Riobaldo e Diadorim, aliás. É curioso como existem essas similaridades em obras tão culturalmente diferentes, e que dificilmente dá pra dizer tiveram inspiração uma na outra (a menos que alguém traduzisse livros brasileiros pro Japonês nos anos 60 ou 70 por algum motivo qualquer, o que acho muito pouco provável).

            Seu comentário foi bem interessante, obrigado!

  3. Gostei bastante do post, aprecio bastante essas publicações mais longas que se dispõem a apresentar detalhadamente as informações e pontos de vista sobre algum assunto. Percebo que está ficando cada vez mais raro encontrar blogs assim 😦

    Devilman Crybaby foi meu primeiro contato com a franquia, fui assistir mais no estilo “caí de paraquedas”, nunca havia nem ouvido falar do nome Go Nagai, e devo dizer que foi uma experiência chocante e única, com uma estética incrível e uma história realmente bem construída (fiquei com vontade de ler o mangá).

    Em relação àquela passagem que você havia comentado sobre o fato de não lembrar de quase nenhuma produção recente lançada diretamente em OVA, um exemplo que me recordo nesse momento é Kubikiri Cycle: Aoiro Savant to Zaregototsukai (aka um dos meus animes favoritos).

    • Fico feliz que tenha gostado, ainda que tenha seu primeiro contato com Devilman e obrigado pelo elogio em relação ao texto! Eu como fã de longa data do negócio fiquei bem satisfeito com a adaptação, como já devo ter deixado transparecer no texto hahaha.

      E sobre OVAs recentes, esse que você citou foi uma surpresa pra mim. Eu sei mais ou menos o que é Zaregoto (conheço mais por conhecer de passagem o trampo do Nisio Isin… por causa de Medaka Box, e de ter visto 1 episódio aleatório de Bakemonogatari), mas eu não fazia a menor ideia de que existia uma versão animada disso. Fiquei bastante interessado e obrigado por apresentar isso aqui!

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